Na madrugada

O livro é bom, mas é Lisbeth Salander que a fascina. Contratada pelo jornalista Mikael Blomkvist para ajudá-lo a resolver o misterioso desaparecimento de Harriet, a  figura da hacker lhe parece uma sacada genial do autor. Ela foge aos estereótipos associados às mulheres. Não é especialmente bonita e muito menos frágil ou submissa. É inteligente. Não gravita em torno do herói da história. Ao contrário, Lisbeth impulsiona a narrativa com sua mente ágil e subversiva.

É para acompanhar  de perto seus passos que a moça lê madrugada adentro. De alguma forma, por causa de Lisbeth, o mote principal do livro perde um pouco sua força. Todos querem saber que fim levou a menina Harriet. Mas não há como tirar o foco de atenção de Salander. A leitora quer saber o que se esconde por trás de suas tatuagens e piercings, observar seu comportamento inconstante. Para isso, lê avidamente o livro, torce por ela e…  se esquece de que amanhã é dia de acordar cedo, estudar, trabalhar. Só se o cansaço a vencer abandonará Lisbeth. Tem certeza de que valerá a pena.

O “Olho de Livreira” identificou:

“Os homens que não amavam as mulheres”, de Stieg Larsson. Trilogia Millennium. Editora Companhia das Letras.

Ilustração:

Autoria desconhecida, salvo através de thomerama.tumblr.com  

 

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

Me ajuda a olhar

Sente falta de sua terra natal. Naquele inverno gelado, em um país distante do seu, a saudade aperta-lhe o peito. Quer sorrisos solares, beijos no rosto, quentura nos abraços. Sonha com vento de sopro morno e gente de coração aguerrido. Por isso, folheia o livro em busca dos pequenos afagos oferecidos pelo autor. Por hoje, não quer saber da História gigante que ocupa os noticiários. Precisa das histórias minúsculas que nascem nos interstícios, nos intervalos onde a alma da gente se encontra com a de outra pessoa.

O autor a ensinou a prestar atenção nos instantes que são a matéria da vida. No livro, ele conta histórias de povos nascidos em um continente de desiguais, comandantes tolos e elites gananciosas. Gente que, todos os dias, acaba convertida à força em herói de si mesma. Todos têm muito a falar. Por isso, o autor é como o Narrador do Novo México descrito no livro: está “todo brotado de pessoinhas”.  Cada qual falando de sua dor, desejo, culpa ou amor. O resultado é um livro tão belo que uma das melhores formas de descrevê-lo talvez seja parafraseando o menino que vê pela primeira vez o mar. Extasiado, conta Galeano, ele pede ao pai que lhe faz companhia. “Me ajuda a olhar!”

O “Olho de Livreira” identificou:

“O Livro dos Abraços”, de Eduardo Galeano. L & PM Editores.

Ilustração:

Sarah Wilkins.

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

Sabe-tudo

Volta com o sexto volume da coleção e se acomoda depressa à mesa. Mal pode esperar para conhecer os segredos que o livro encerra. Desde que descobriu as enciclopédias da mãe, há algumas semanas, não consegue parar de ler. São dez volumes ilustrados, com capas de todas as cores e, para a menina, com todo o conhecimento do mundo guardado.

Já aprendeu sobre como funciona a máquina de escrever, o que é hipocampo, como são feitas as pérolas e até quem foi Goethe, Virgílio, Marie Curie, Orlando Furioso, Pasteur e dezenas de outras personalidades.  Lê do começo ao fim suas seções favoritas como “História da Humanidade” e “Mitos e Lendas de cada povo”. Mesmo o que não a interessa tanto merece uma passada de olhos. Não consegue deixar de fazê-lo. Sua mente de menina é como uma esponja: absorve tudo, nada quer deixar de reter.

Com dez anos de idade, ela suspeita que aquele mundo de informações é só o início: há maravilhas demais a conhecer. Precisa começar logo.

O “Olho de Livreira” identificou:

“Trópico – Enciclopédia ilustrada em cores”. Coleção com 10 volumes. Livraria Martins Editora S.A.

Ilustração:

“Girl reading”, de Antonio Cerra.

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

Meu irmão em Universo (*)

Lê a famosa passagem:

“Camarada, isto não é um livro,/ Quem toca nisto toca num homem”.

Procura mais.

Encontra:

“EU CELEBRO a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.
Vadio e convido minha alma,
Me deito e vadio à vontade . . . . observando uma lâmina de grama do verão”.

Marca cuidadosamente a página.

Deixa o livro. Alcança a vida.

 

O “Olho de Livreira” identificou:

“Folhas de Relva”, de Walt Whitman. Editora Iluminuras.

Ilustração:

Roberto Innocenti

 

(*) Trecho retirado do poema “Saudação a Walt Whitman”, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).

 

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

 

Exaltação

Não lê poesia sempre. Nunca quando está apressada. Tampouco para transitar por outros mundos. Muito menos quando quer descansar.  Ama poesia porque a faz estar ali, nela mesma. Desperta o suficiente para se deixar atordoar, tombar dentro de si. Por isso, gosta dos exaltados. De poetas que derramam sobre o leitor o que neles não cabe mais. Hoje, quer que a distraiam da finitude. Precisa de alguém sedenta como Florbela Espanca.

 “Ai as almas dos poetas / Não as entende ninguém; /São almas de violetas /Que são poetas também. /Andam perdidas na vida, /Como as estrelas no ar;/ Sentem o vento gemer /Ouvem as rosas chorar!” A intensidade da busca da poeta a conforta.  Para a leitora, essa disposição de espírito contraria a Morte. Desespero, angústia, amor, gozo. Qualquer movimento, mesmo o mais terrível ou ínfimo, se opõe ao Vazio. Por isso, vale a pena.

E que a poeta tenha feito do Amor seu indizível parece-lhe um deleite a mais. “Crisântemos de sangue, vós sois beijos!// Os amarelos riem amarguras, /Os roxos dizem prantos e torturas,/ Há-os também cor de fogo, sensuais…/ Eu amo os crisântemos misteriosos /Por serem lindos, tristes e mimosos,/ Por ser a flor de que tu gostas mais!”. Do Amor, até mesmo a impossibilidade, ela pensa, é respiro diante do Nada.

O “Olho de Livreira” identificou:

“Poesia de Florbela Espanca – volumes 1 e 2”, de Florbela Espanca. L&PM Editores.

Ilustração:

John Ennis

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

E se…

Ela lê e não consegue deixar de contradizer cada frase do livro.

“A vida se transforma rapidamente”. Mas você sempre é capaz de retomar o controle, momentos depois de qualquer guinada.

“A vida muda num instante”. Mas você sempre terá dias, meses, anos à sua frente.

“Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Mas não a sua vida. Sempre a vida dos outros. E nunca dos “seus” outros. Apenas dos outros que orbitam em torno de desconhecidos.

Em suas mãos, um livro sobre perdas. As imensas. Aquelas que te arrancam certezas, esperanças, paz de espírito. Sabe que o escolheu a dedo. Aquele é o relato de uma mulher em sua busca por desvendar o horror causado pela morte de um ente querido. Parece-lhe um dos livros mais honestos que já leu, em sua tentativa de elaborar o inaceitável. Sem autopiedade, receitas ou desvios.

Apesar disso, um texto comovente sobre como o inimaginável consegue atordoar mesmo o mais racional dos seres. Sobre como somos levados a usar qualquer ferramenta na tentativa de chegar ao outro lado. Sobre acordos com Deus, o Universo ou nosso próprio entendimento. Sobre a barganha em troca do instante anterior à nossa queda no abismo.

O “Olho de Livreira” identificou:

“O ano do pensamento mágico”, de Joan Didion. Editora Nova Fronteira.

Ilustração:

Francis Manfredi

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

O segredo da menina

Ela é pequenina, mas procura faz tempo. Está em busca de fadas com olhos negros como jabuticabas. Quer saber se existem princesas com a pele cor de caramelo. De mogno. De cobre. De chocolate. Espera encontrar sereias que, sentadas em pedras, cantem e penteiem cabelos tão crespos quanto os seus. Está difícil! Mas encontrou um livro onde mora uma menina bem bonita, com um laço de fita, e um admirador que não sossega. Um coelho branco que quer saber qual o segredo para ela “ser tão pretinha”.

De olho na história, ela acompanha as aventuras do bichinho para conseguir filhotes como a menina, de pele “escura e lustrosa, que nem o pelo da pantera negra na chuva”.  Acha linda a comparação. Por isso, começa a pensar nas pessoas que conhece e com o que se parecem. Ela tem uma tia, por exemplo, com braços da cor de mel. Sua melhor amiga tem o cabelo vermelho como seu lápis de cor favorito. Papai é todo creme, como sorvete.  E ela mesma? Acha que se parece com a namorada do coelho: “escura como a noite”. É isso mesmo. Ela é uma menina bonita com pele cor de café. Pode ser princesa, fada, sereia ou prender laço de fita no cabelo, se quiser.

O “Olho de Livreira” identificou:

“Menina bonita do laço de fita”, de Ana Maria Machado. Editora Ática.

Ilustração:

Autoria desconhecida, compartilhada via etsy.com

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

Todas e nenhuma

É quase uma provocação que a folha diante de seus olhos permaneça em branco. Acaba de se perder em nada menos que dez histórias diferentes. Todas capazes de fazê-lo submergir em seus enredos. Todas pertencentes a um mesmo livro e assinadas pelo mesmo autor. Todas ardilosamente inacabadas com uma precisão desesperadora para o leitor que implora por mais. Todas arrematadas com um fio solto que o autor reteve para atar mais adiante. Um romance surpreendente feito de interrupções.

E quanto a ele? Nenhuma palavra consegue prender àquelas páginas em branco.

Terminado o livro, quis se tornar autor. Sonho antigo o de criar universos inteiros, brincar com a atenção de quem lê. Tendo antes usado mil e uma estratégias, veio-lhe a ideia de aproveitar aquelas histórias suspensas no ar. É quase um desperdício assisti-las soltas, à espera de parágrafos que as façam convergir para seu fim – outro fim. Horas depois, certifica-se de que elas não se assentam bem. Já não sabe o que fazer. Luta com a imaginação, fogem-lhe os personagens. Há anos, tenta produzir o Grande Romance. Começa a acreditar que só vale a pena ler (e ser) autor que escreva livros “como uma macieira faz maçãs”.

O “Olho de Livreira” identificou:

“Se um viajante numa noite de inverno”, de Italo Calvino. Editora Companhia das Letras.

Ilustração:

Não identificada. Compartilhada via thomerama.tumblr.com

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

 

Inseto

É claro que não conseguiria dormir. Durante o dia, mesmo sob os protestos da prima, aproveitara cada momento de sossego para ler um pouquinho. A outra menina reclamava. Queria brincar. Afinal, estavam de férias na fazenda. Ela não entendia nem aceitava suas explicações: havia um grande mistério ali que a o-bri-ga-va a ficar grudada na história. Por isso, agora que a prima dormia, devorava o livro.

Precisava saber logo quem era o “Inseto”.  Apesar dos esforços de Alberto e da polícia, os ruivos continuavam a morrer, em Vista Alegre. O moço era o irmão da primeira vítima e também quem descobrira a ligação entre as mortes e a cor do cabelo dos assassinados. Fora ele quem percebera também a estranha correspondência recebida por todos, antes de cada tragédia: pacotinhos contendo escaravelhos.

A menina havia consultado o dicionário. Escaravelhos são besouros com antenas em forma de lâmina. Insetos pequenos, feiosos e desengonçados que vivem caindo de costas.  Ela nunca se impressionara muito com eles. Mas agora não conseguia parar de olhar para os lados. Em sua imaginação, os escaravelhos começavam a se tornar gigantescos, avermelhados e assustadores. É, precisava mesmo terminar aquela leitura.

O “Olho de Livreira” identificou:

“O Escaravelho do Diabo”, de Lúcia Machado de Almeida. Editora Ática.

Ilustração:

Mai S. Kemble.

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.

Rubro e viscoso

Ela mal pode esperar para amar assim. Já não lhe bastam uns beijos roubados ou o ligeiro formigar de suas bochechas quando se percebe observada. Começa a desconfiar de que há mais a experimentar.   Tem certeza de que já se apaixonou, é claro. Foram duas vezes, só no último ano. Mas, com certeza, sua alma sequer resvalou naquele sentimento rubro e viscoso em que os personagens do livro parecem querer se afundar.

“Não posso ouvir você. Não posso ouvir sua voz. É como se eu bebesse uma garrafa de licor e adormecesse numa colcha de rosas. E me arrasta, e sei que me afogo, mas vou atrás”, diz a Noiva na peça. De imediato, a garota pesa as palavras e observa as levezas que já conhece.  Depois se aproxima da brasa que ali adivinha. Ela se perturba com a disposição da Noiva em tudo deixar pra trás: o Noivo, a família de onde veio e a que pretendia formar.

Sua atenção, no entanto, está presa ao que de irresistível se insinua. “O outro me mandava centenas de pássaros que me impediam de andar e derramavam orvalho nas minhas feridas de mulher fraca e abatida, de moça acariciada pelo fogo”, conta a Noiva. A garota quer seu sangue correndo grosso nas veias como o daquelas pessoas. Começa a contar os minutos até o momento em que irá prová-lo e misturá-lo ao do grande Amor. Nada lhe importa mais.

O“Olho de Livreira” identificou:

“Bodas de Sangue”, de Federico García Lorca. Editora Peixoto Neto.

Ilustração:

Kelly Vivanco 

 

O “Olho de Livreira” brinca com um hábito que os “apaixonados pela leitura” conhecem bem. A mania de tentar descobrir qual obra está sendo lida por qualquer pessoa que se aproxime com um livro. Aqui, o olhar se amplia e a Livreira tenta imaginar não só os títulos, mas quais os pensamentos e sensações de seus leitores. Uma espécie de resenha elaborada a partir do ponto de vista de personagens fictícios: leitores ilustrados por diversos artistas.